Wednesday, November 08, 2006





A Puta





Qual era mesmo a profissão da moça, poucos poderiam pagá-la, muitos poderiam possuí-la. Seus sonhos talvez lhe fossem múltiplos, sua personalidade talvez lhe fosse oblíqua – se não fosse por essa antiga palavra de quatro letras, às quais mantém o tabu de sua libidinosa sobrevivência. Iracema poderia eu amá-la? Iracema poderia eu possuí-la? Seu rosto de traços finos e delicados, seus olhos negros e dissimulados sobre os quais inebria a todos de um líquido indescritível de meiguice e sensualidade que a tornava irresistível.

Certa noite, na rua dos Tabajaras, no Bar Iracema, encontrava-me atônito ao presenciar aquele ir e vir incessante de homens e mulheres. Mais adiante, nas esquinas, outras “solitárias mulheres” ofereciam-se reciprocamente, imersas nos prazeres e no desejo ávido de cheirar pó noite adentro. Por conseqüência, desta mesma subsistência, não seria, portanto, a vida uma eterna mulher da vida que dá para tudo e a tudo se dá? Sobretudo, fico certo de que precisamos de um novo barro para reconstituir uma nova vida. Pois, ao contrário do hipocondríaco Brás Cubas, prefiro eu esta comparação a do mestre.

Sim! Fazia-se cálida e agitada aquela noite no Bar Iracema. Ao centro, carambolas sobre o bilhar batiam-se sucessivamente, uma após uma, impelidas pelo taco destro de um jogador vadio que, com astúcia de bom jogador, tenta pô-las na caçapa. Todavia, o que ultrapassava o espelho ocular de minhas retinas, era a nudez rústica do telhado envelhecido, sustentado por grossos caibros e por finas ripas de madeiras alongadas sobre a edificação centenária que resistia ao tempo e a um possível desabamento. Por todos os ângulos haviam bêbados: fumavam, cheiravam, cuspiam e de quando em quando praguejavam certas palavras apáticas quando o taco lhes falhava a pontaria: Filhos de uma égua – resmungava esmurrando o bilhar – faltou giz outra vez. E o que mais atormentava, era saber que de metro em metro, sobre a extensão concreta das calçadas, haviam crianças postas em posição de misericórdias, vestidas em seus farrapos a nos implorar uma esmola em nome de seus pais. Pois se é com a ambição que dissimulamos a miséria social, é também com a labuta de existir na vida que dissimulamos o ser “sócio-solitária” que se dá a qualquer passeio público nessa vida mundana, a qual transita na inquietação contínua da noite o lucro dos gozos físicos e não espirituais de Iracema, fruto do útero opressor dessa orgia noturna.

Libidinosamente a cobiça sorvia-lhe o amor, moldava-se a babel do prazer, desentendia-se, perdia-se em potência. Ora, o prazer tomava o nome de cobiça. Ora, a cobiça tomava o nome de prazer. Vestia a máscara momentânea do amor e dizia para mim, tocando com sutileza uma rosa entre os seios: Sexo nunca foi nem nunca será rotina. Certo é que todo homem é um estado simultâneo de cobiças em que minha vida fecunda-se as mesmas... Em verdade sou toda submissa! Porém minha personalidade se interpreta numa outra personalidade, que a vida, com sua máscara de “vida é bela”, mascarou-me à sua... Por fim, deixemos de lado todo este revestimento de palavra, vamos direto naquilo que no princípio corrompera os homens, me deseja?

Pouco a pouco, se aproximava o fim da noite. Reduzia-se quase ao mínimo a mendicância dos mendigos sobre as calçadas – adormeciam logo alí ao relento sob a insensibilidade negligente de alguns burgueses sorridentes e a fome insaciável de suas barrigas vazias. Ao oposto, o que se visualizava (após o balcão do bar), era a imagem sagrada de um Cristo revolucionário onde aos seus pés uma Madalena ressarcida de seus pecados os beijava.

Por todas as ruas fluíam cacofônicos gringos com suas mulheres concubinas... Miscigenando as raças, aculturando as línguas. Iam-se as sucessivas horas. De bar em bar (da esquina dos Tabajaras a ponte dos Ingleses) eram mesas, cadeiras, uma a uma sendo recolhida, entrechocavam-se. Pois a impassibilidade paralítica de serem objetos não lhes permitia movimentos. Tudo isso me trespassava os glóbulos, encharcava-me a mente tal qual a cachaça que me embriagava. E eu, em estado de cérebro-ébril, perguntava ao Isaque dono do bar: Qual era mesmo a profissão da moça? Puta! Respondeu um avizinho, vendedor de cigarros, que passava na hora.